“O caminho a seguir é o da medicina personalizada”

Entrevista com Raquel Gil-Gouveia, neurologista responsável pelo Centro de Cefaleias do Hospital da Luz

Set 13, 2018
Raquel Gil Gouveia

Tendo presente a sua primeira experiência como investigadora num ensaio clínico, conte-nos um pouco da evolução que tem vivido ao longo dos anos, pontos positivos e eventualmente menos positivos?

Tenho a ideia que o meu primeiro ensaio foi na área das doenças vasculares, na prevenção secundária do AVC e foi há mais de 15 anos, ainda era eu interna. Atualmente, penso que os ensaios são realizados de uma forma muito mais sistematizada, quer no tipo de avaliação, os registos e mesmo na definição dos objetivos do estudo. Os ensaios são mais homogéneos entre eles e os procedimentos são mais simples. Hoje em dia, há um maior número de ensaios e o mais difícil acaba por ser gerir o número de doentes. No entanto, há equipas dedicadas, cada vez mais atentas, por parte da indústria e mesmo no Hospital, com os study coordinators. A carga burocrática do investigador é muito menor. Há também mais informatização dos processos, o que aumenta também a qualidade e fiabilidade da informação.

Qual a diferença entre seguir um doente na prática clínica e no âmbito de um ensaio clínico?

Há situações em que a prática clínica deveria ser mais próxima da realidade de um ensaio clínico. Talvez esta cultura beneficiasse todos. De um modo geral, os doentes de ensaios gostam de fazer parte dos mesmos, porque têm mais tempo, atenção e são avaliados com mais detalhe. Ao contrário do que poderiam pensar, em vez de se sentirem “cobaias”, sentem-se mais próximos e protegidos. Há um contacto preferencial e privilegiado com investigadores e restante equipa. Ainda me recordo de um doente que participou num ensaio e, como já tinha uma idade avançada confidenciou-se que achava que não o iria terminar, já que o ensaio era de vários anos. Na altura apostei com ele que ia conseguir terminar o ensaio e ficar bem. Mesmo depois de terminar o ensaio combinámos uma visita, anualmente. Um dia ele não apareceu e fiquei preocupada, mas mais tarde procurou-me, de propósito, para dizer que tinha mudado de cidade e queria despedir-se. As pessoas ficam, de facto, com uma ligação.

Tendo em conta a sua experiência, quais as principais diferenças na realização da investigação clínica no setor público e privado?

Depende muito do local e das pessoas envolvidas. Acho que quando as pessoas querem trabalhar nesta área empenham-se realmente, independentemente de o setor ser público ou privado.

Considera que os desenhos dos Ensaios Clínicos estão a evoluir para “patient-centricity” ou ainda é um futuro longínquo? E quais as principais vantagens desta abordagem?

O “Patient-centricity” e os PROs (Patient-reported Outcomes) são uma moda atual, mas uma moda que considero necessária. Uso a expressão “moda” porque, como em tudo, inicialmente há um exagero e depois vamos encontrar um equilíbrio. No final, o que interessa é que o doente fique bem e, nesse sentido, convém que tenhamos medidas que traduzam o melhor possível se o doente está bem. O problema é que as medidas de bem-estar do doente não são valorizadas por cada um de uma maneira homogénea. Por exemplo, se perguntarmos a uma pessoa com enxaqueca qual é o impacto das náuseas na sua vida, algumas pessoas que sofre, muito com isso vão valorizar, outras que não tem muitas náuseas não vão considerar um problema. Se formos avaliar o número de vezes que a pessoa vomita, já seria mais objetivo. Às vezes, a perspetiva com que retiramos essa informação varia um pouco. E o problema não é ser centrado no doente, mas sim ser uma informação avaliada em grupo. O caminho a seguir é o da medicina personalizada, ou seja, quando avaliamos os outcomes vamos ter que definir os que são realmente relevantes para aquele doente em particular.

Se tivesse que escolher, qual considera ser um dos maiores obstáculos da Investigação Clínica?

Uma das grandes dificuldades dos ensaios é introduzir os mesmos na prática clínica. Os ensaios têm uma grande necessidade de tempo. É uma atividade extra-clínica e é difícil gerir esta situação. Não só ensaios, mas investigação clínica, em geral.

Considera que seria vantajoso haver Hospitais dedicados quase exclusivamente a Investigação Clínica ou, por outro lado, iria restringir o acesso a doentes específicos?

Neste momento, penso que Portugal não tem condições para esse passo. Temos pouca tradição na população para participar em ensaios clínicos. As pessoas continuam a não ter confiança, a achar que vão ser cobaias e que não vão retirar qualquer benefício. Penso que esta cultura tem que ser um pouco alterada, porque hoje em dia eu tenho a convicção que os doentes entram nos ensaios clínicos por confiança no médico e não propriamente pelo fármaco em si. No dia a dia existem muitos doentes informados sobre fármacos novos no mercado ou alternativas terapêuticas, questionando se os podem utilizar, mas raramente perguntam se há novos fármacos experimentais. As pessoas ainda entram nos ensaios por proposta do médico e por confiança no mesmo. Se estes centros específicos não têm doentes próprios, no nosso contexto cultural, neste momento, não seria uma situação com muito sucesso. É muito comum nos Estados Unidos pois existe nesse contexto uma integração natural e uma oportunidade de ter acesso a medicação. Hoje em dia, as pessoas mais novas são mais informadas e penso que num futuro a médio-prazo talvez esta realidade possa ser uma opção no nosso país. Culturalmente, talvez fosse interessante começar por um conceito intermédio, um grande centro de ensaios, de investigação onde os investigadores fossem seguir doentes específicos de ensaios. E como evolução disso, um centro específico, com staff próprio.