"Ser investigador em ensaios exige muita disponibilidade, mas é muito recompensador"

Entrevista com João Cerqueira, investigador no departamento de neurologia do Hospital de Braga

Junho 03, 2018
Joao Cerqueira portrait

Como foi a sua primeira experiência como investigador num ensaio clínico? O que o motivou a fazer investigação?

A minha primeira experiência como investigador num ensaio foi muito feliz. Participei logo como investigador principal num estudo em que Portugal tinha sido selecionado e não tinha ainda nenhum doente incluído a 3 meses de encerrar o recrutamento. Foi uma grande alegria, pois desde que tinha terminado a especialidade e ficado responsável pela consulta de esclerose múltipla no meu hospital tinha procurado ativamente participar em ensaios, tinha preenchido muitos questionários de exequibilidade e falado com muitos promotores, sem grande sucesso. O facto de ninguém estar a recrutar no país foi a minha sorte: em 3 meses abrimos o centro e incluímos 2 doentes, que ainda por cima se deram muito bem (e tiveram ambos a sorte de calhar no braço experimental), continuando ainda hoje, 5 anos depois, com a doença muito bem controlada e a fazer o mesmo fármaco num estudo de extensão. A partir daí nunca mais parei de participar em ensaios, e sou um entusiasta da participação, promovendo-a junto de colegas e dos doentes.

Tendo já um doutoramento completado durante o internato, estava consciente das vantagens de fazer investigação e em particular investigação clínica. Do ponto de vista dos médicos, obriga-nos a manter-nos atualizados, ensina-nos a questionarmos o que fazemos e motiva à melhoria contínua. Do ponto de vista dos doentes, dá-lhes acesso a cuidados de saúde inovadores, num ambiente de melhoria contínua e ajuda-os a sentir úteis, contribuindo para melhores cuidados a portadores da mesma doença no futuro. Em resumo, é uma situação em que todos ganham.

Tendo presente a sua primeira experiência como investigador num ensaio clínico, conte-nos um pouco da evolução que tem vivido ao longo dos anos, pontos positivos e eventualmente menos positivos?

A primeira experiência foi de muita alegria, pois era algo muito desejado, mas também de intensa aprendizagem. Na altura tive muita sorte, pois estando num centro clínico que estava a começar e sendo um investigador principal sem experiência, encontrei uma monitora extraordinária, que nos ajudou e guiou em todos os passos. Foram tempos muito exigentes e de uma enorme polivalência: mas altamente enriquecedores. No início acho que fiz quase todas as tarefas do ensaio, o que me deu um conhecimento profundo de toda a logística associada, e foi altamente produtivo quando a equipa começou a crescer, para ter noção do que lhes pedir e para os ajudar a alcançar os objetivos. Felizmente temos conseguido fazer crescer a equipa ao mesmo tempo que cresce a nossa participação em ensaios (neste momento temos 6 ensaios de fase III ativos, com mais de 20 doentes) e, mesmo assim, todos damos o nosso melhor e fazemos os impossíveis. Caso contrário, seria impossível. Ser investigador em ensaios exige muito tempo e disponibilidade, mas é muito recompensador.

Como reage um doente quando lhe propõe fazer parte de um ensaio clínico e de que forma o motiva a participar?

A maior parte dos doentes são muito recetivos. A maior parte das vezes, quando proponho um ensaio, se não me dizem logo que não (são muito poucos), dou-lhes um mini-curso sobre ensaios em geral, explico em que consistem, qual o objetivo e o que é pedido aos doentes. Reforço muito a ideia de que não estão a ser cobaias; estão a testar um novo fármaco num ambiente muito exigente, de prática clínica altamente regulada, vigiada e muitas vezes de melhor qualidade do que a prática clínica regular. Claro que um novo fármaco tem sempre riscos, e explico-os também, bem como à incerteza inerente à experimentação. Contudo, ressalvo sempre que estarei ao seu lado qualquer que seja a decisão que tomem. Creio que é muito importante saberem que, se participarem no ensaio, vão continuar a ser seguidos por mim e que estarei sempre do lado deles para defender os seus interesses. Geralmente, acabam quase sempre por aceitar participar, mesmo em face de documentos de informação ao doente com mais de 40 páginas (!).

Um doente de ensaio clínico é um doente diferente?

Sim, é necessariamente um doente mais informado e mais comprometido com a sua doença. É um doente mais atento e que colabora mais. Contudo também é um doente mais exigente. É preciso muita disponibilidade; mas esse é o compromisso que assumo quando lhes proponho participar.

Quais os principais problemas/dificuldades que podem dificultar a investigação clinica em Portugal? O que poderia ser feito para potenciar esta área?

Durante muito tempo o problema eram os prazos de aprovação. Atualmente, com as alterações regulamentares, os processos estão muito facilitados e na maioria das situações decorrem sem problemas. Contudo ainda persistem outros que se poderiam resolver com facilidade. Há muitos centros com poucas estruturas de investigação profissionais. Os ensaios são muito exigentes e os clínicos têm pouco tempo, por isso precisam de muito apoio, nomeadamente da parte de coordenadores de estudos clínicos. As instituições têm de perceber que são uma mais valia e agilizar a sua contratação. Por outro lado, ainda há muitos médicos que não estão comprometidos com a investigação. Na minha opinião, qualquer médico, sobretudo os que exercem em hospitais de maior dimensão ou associados a centros académicos ou de ensaios, devia interessar-se ativamente por participar, ajudar no recrutamento, procurar contribuir para o sucesso do centro. Só com a colaboração de todos é possível ter um bom desempenho. Um investigador isolado não faz um centro, por mais apoio técnico ou político que tenha. Estas dificuldades e o facto de na prática clínica e na avaliação dos médicos a participação em ensaios ser um parente menor faz com que globalmente Portugal tenho resultados modestos (na melhor das hipóteses) em termos de recrutamento (número e celeridade), apesar da alta qualidade dos dados, o que nos dificulta muito a tarefa de atrair mais e melhores ensaios para o nosso país. Aqui faz falta uma estratégia concertada entre todos os centros e as autoridades e os promotores e CROs portuguesas, para vender o país.

E o que se faz de melhor em Portugal nesta área e que poucos sabem?

Excelente investigação básica e de translação, que poderia servir para ancorar investigação clínica de ponta. E produzem-se dados clínicos de excecional qualidade e rigor. E disso quase não se fala.

Quais os principais desafios que a área da investigação lhe coloca diariamente?

Tempo e anos de vida para responder a todas as questões que a prática diariamente me coloca. Assim tenha saúde (e sorte de conseguir financiamento). Além destes, o maior desafio é motivar os colegas, sobretudo os mais novos. É uma tarefa de crucial importância, mas muito difícil. As condições de trabalho deterioraram-se muito, desmantelaram-se as carreiras e tudo isso desmotiva e dificulta a adesão dos mais novos. Contudo, é neles que está a chave da mudança.

Qual é para si a principal motivação quando decide ser investigador num ensaio clínico?

O prazer de colocar continuamente questões com impacto no dia a dia dos doentes, muitas vezes nascidas da prática clínica, imaginar um modo de lhes responder e procurar pô-lo no terreno. O maravilhamento com o ter respostas, mesmo que negativos, ou com colocar questões que nunca ninguém viu. É uma atividade que nunca nos aborrece e nos mantém sempre jovens.

Qual a diferença entre seguir um doente na prática clínica e no âmbito de um ensaio clínico?

Toda e nenhuma. Nenhuma porque continuamos a ser o melhor advogado do doente e a fazer tudo por ele, a ajudá-lo a zelar pela sua saúde. Toda porque o seguimento do doente é muito mais intenso, escrutinamos muito mais a sua vida, estamos com ele muito mais vezes e ficamos a conhecê-los muito melhor. Ao fim de alguns anos é difícil não ficarmos amigos...